terça-feira, 13 de novembro de 2018

Miguel Araújo e Joana Almeirante - O Quarto de Glória



Letra


 QUARTO DE GLÓRIA

No andar de baixo da casa, encafuado entre o quarto de costura e a casa-de-banho, ficava um pequeno quarto, um vão esconso sem janelas, de entrada não autorizada. Era o quarto de uma tia-avó que tinha nascido de um parto complicado que havia exigido umas tenazes que lhe haviam afectado uma parte do cérebro. Dizia-se que tinha a desenvoltura mental de uma criança de seis anos. Uma vez a minha avó incubiu-a da tarefa de ir comprar o jornal e ela disse que se calhar trazia também o do dia seguinte para evitar posterior deslocação. Nada mal pensado. Lembro-me de ainda não ter seis anos e de viver o pânico de padecer da mesma maleita mental, pois ainda não tinha ultrapassado essa idade de charneira, esse patamar etário de garante mental aquém do qual essa tia maluca havia estacionado para sempre - sosseguei aos sete.

Quanto a esse quarto estranho, não pude senão espreitar de fora. Lembro-me de uma mistura nauseante de cheiros indecifráveis e de uma parede de prateleiras cravejada a bugigangas de espécie vária: missangas, caixinhas, brinquedos, amuletos, frascos, santinhos e espelhos pequenos.

Eu não era autorizado senão a espreitar clandestinamente lá para dentro, o que terá acontecido 4 ou 5 vezes ao todo. Era sem dúvida o recanto mais misterioso de todos os recantos da casa cujos recantos consigo reerguer na memória até ao mais detalhado pormenor, sem esforço. Quanto ao que se passava dentro deste quartinho, já tenho que recorrer a um esforço acrescido da imaginação.

O QUARTO DE GLÓRIA

Maria Da Glória,
o dia finda
Põe se linda
(ainda que feia)
Meia lua 
(chega lua cheia)
Pinta-se a um espelho rombo e embaçado
De uma caixa de veludo pardo
A bijuteria de fancaria
No escuro até que parece
E assim que a casa anoitece
Maria da Glória  acontece


Maria da glória
Chiquitita
Tão bonita
(Ainda que nunca)
Quando a rua é feia, a lua chega
Guarda as missangas e as contas num frasco
Lá fora a vida dá-lhe um certo asco
São muitas buzinas
Tróleis, ardinas
Debaixo de um sol que escurece
Pois só quando a lua  aparece
É que Maria Da Glória acontece

Maria da Glória
De peruca
Tão maluca
(Ainda que seja)
Num quarto de lua nem janela
Borrata os lábios e dança descalça
Às voltas com a vassoura numa valsa
Finge que é vida
finge que é lida
Se alguém de repente aparece
Mas só porque nunca aparece
é que Maria Glória acontece


Direcção musical e arranjos: João Martins
Gravação e misturas: Bruno Pereira
Video: Paulo Bico
Iluminação: Miguel Ângelo Hayes
Produção: Francisco Carvalho

Agradecimento especial ao Guindalense e ao Tony Lemos

Sem comentários:

Enviar um comentário